Acabei de assistir à temporada piloto de Demolidor (Daredevil) na Netflix, primeira parceria deste serviço de transmissão de conteúdo sob demanda e a Marvel. Antes de tudo é preciso destacar que os tempos são outros, a internet se mostra cada vez mais indispensável ao entretenimento e a sua força cresce com o investimento e o trabalho sério de empresas como a Netflix. O exemplo está na série sobre a qual eu escrevo. Bom, mas esse assunto fica para outro artigo.

Há muito a se falar sobre os 13 primeiros capítulos da série. Eu, porém, vou me ater apenas sobre o lado humano, religioso e racional, de Mattew Murdock (Charlie Cox). Apesar de o slogan de Demolidor ser “O homem sem medo”, o católico Matt expressa suas fragilidades e as confessa ao padre Lantom (Peter McRobbie) ao longo dos episódios.

O advogado, que cresceu cego após salvar ainda criança um homem de um acidente automobilístico e ter a visão perdida devido a um produto químico cair em seus olhos, é temente a Deus a ponto de em todos os capítulos conversar com o padre. Nos encontros e confissões, diálogos filosóficos e teológicos são travados. O melhor deles no capítulo 9 em que Matt, perturbado, questiona o sacerdote sobre a existência do diabo. O padre torna uma resposta complexa, simples e entendível.

Confira: 

Padre Lantom: Como um conceito?

Matt: Não. Acredita que ele exista? Neste mundo, entre nós.

Padre Lantom: Quer a resposta curta ou a longa?

Matt: Apenas a verdade.

Padre Lantom: Quando eu estava no seminário, eu era mais estudioso que devoto, mais cético que a maioria dos meus colegas. Eu tinha essa noção, eu estava disposto a falar a respeito, em detalhes, com quem eu pudesse encurralar, que o diabo era inconsequente. Uma figura menor no esquema geral das coisas.

Matt: Pouco católico.

Padre Lantom: É. Em minha defesa, nas escrituras, a palavra hebraica “Satanás” significa “adversário”. É aplicada a qualquer antagonista. Anjos e humanos, serpentes e reis. Teólogos medievais reinterpretaram essas passagens sendo sobre um único inimigo monstruoso. E, em meu zelo da juventude, eu tinha certeza do porquê. Propaganda. Criada para levar o povo à Igreja.

Matt: Não acredita que exista.

Padre Lantom: Terminei de falar?

Matt: Desculpe.

Padre Lantom: Anos depois, eu estava em Ruanda, ajudando igrejas locais providenciando santuário e amparo a refugiados. Eu fiquei amigo do ancião da aldeia, Gahiji. Ele e sua família tinham o respeito de todos, hutu e tutsi. Ele ajudava a todos através de penúria, doença. A milícia gostava de forçar os hutus a matar os vizinhos com facões. Mas ninguém erguia a mão contra Gahiji. Eles diziam: “como podemos matar um homem santo?”. Então o comandante da milícia enviou soldados para cortar a sua cabeça diante de toda a aldeia. Gahiji nem tentou lutar. Apenas pediu uma chance de se despedir da família. Quando ele terminou, nem os soldados queriam matá-lo. Então pediram ao comandante se podiam atirar nele. Seria uma morte rápida. O comandante quis conhecer esse homem, que ganhou o respeito de tantos. Ele foi até Gahiji, falou com ele em sua cabana por muitas horas, e então o arrastou para fora na frente de todos e o destroçou junto com toda a sua família. Naquele homem que tirou a vida de Gahiji eu vi o diabo. Então, sim, Mattew, eu acredito que ele ande entre nós, tomando muitas formas.

Matt: E se você pudesse impedi-lo de machucar os outros novamente?

Padre Lantom: Impedi-lo como?

Mattew faz a pergunta por que está diante de um homem tão forte e poderoso que domina tudo e todos. Por isso ele compara o seu inimigo ao "diabo" em sua batalha contra o crime no bairro de Hell’s Kichen, em Nova York, mas teme pela perda da salvação de sua alma caso aja com as próprias mãos contra o mal. A lei, nessa altura, não chega a ser indispensável, mas precisa de uma "maozona" justiceira para obter êxito. Com a pergunta “e se você pudesse impedi-lo de machucar os outros novamente?” Matt gostaria de ouvir do reverendo Lantom que combater a violência e as injustiças com mais violência seria uma opção e um meio cristão para se alcançar o bem, mas ouve apenas uma resposta com outra pergunta: “impedi-lo como?”.

Em Demolidor, primeira temporada, religião e racional se confundem e o campo das ideias está presente na maioria dos diálogos, fato que torna a série mais realista. De Matt pode-se tirar a determinação para combater o mal; a coragem; a fé. Do ponto de vista cristão, ele faz a sua escolha e decide arriscar a salvação da sua alma pela vida do próximo - a população de Hell’s Kichen. Não é isso que Deus espera de nós? Doar a vida e até a alma pelos irmãos? Matt não é um salvador do mundo como costumamos ver em praticamente todos os super-heróis, mas um homem com capacidades sobrenaturais e audição aguçada pela falta de visão que ajuda os vizinhos, as pessoas que viu crescer e envelhecer. Partir para a violência, decisão anticristã ou não, predominou o livre arbítrio.

Atuações 

Por fim, não poderia deixar de citar a excelente atuação do elenco. Destaque para o britânico Charlie Cox como Demolidor com sua seriedade e serenidade dá uma pegada curiosa e cheia de suspense ao protagonista e o sócio advogado Foggy Nelson (Elden Henson) que dá o tom cômico à série sem exageros e esforço e o inimigo Wilson Fisk (Vicente D’Onofrio) que, como o personagem dos quadrinhos, dá medo só de olhar.